sábado, 17 de outubro de 2015

Casa

Quando se percebe que a casa agora é sua?
Pergunta estranha essa.
A casa era da vovó. Depois da partida desta, passou a ser da mamãe. Mas mesmo assim nada mudou. Continuei a chegar e a encontrar a cama feita, lençóis fresquinhos, casa limpa e arejada, geladeira cheia, compras feitas. Nunca tive que me preocupar com quem trabalharia lá, com goteiras, com a conta de luz. Passava meus dias felizes na minha alienação, como se a casa funcionasse sozinha. Sempre foi assim.
Vovó cuidava de tudo: tinha quintal varrido, queijo, balanço na goiabeira, querosene nos lampiões para os dias sem luz, canto da cama para as noites de medo. Eram quase 4 meses ao ano, se fossem somados os feriados e fins de semana. Conserta daqui, arruma dali e a casa estava sempre lá prá mim e para o meu irmão. E nos abrigou na infância, ouviu choros na adolescência, brigas, brincadeiras, segredos.
Um dia vovó resolveu que era chegada sua hora e depois de 17 dias, partiu. Foi levada por nós para a casa onde nasceu, trabalhou,casou, começou a criar a filha, adoeceu e mudou. A casa sempre esperou por ela, por nós. E sua última noite foi passada lá, rodeada da família e de tantos amigos.
E a casa continuou. Agora com outra dona, a filha, minha mãe. E tudo continuou. A disposição das camas demorou a mudar, Os móveis pouco mudaram, grandes obras de reforma, mas tudo com a simplicidade e a dificuldade que acompanhou a vida das duas. Mas ela era um membro da família, não a casa da família. Era o ser ouvinte, vivente, acolhedor.



Quando os bisnetos chegaram, a casa recebeu um nome: Casa Azul. De azul só tem as janelas, mas quem discute com criança por causa disso?? Pois é, ninguém.E ficou mais viva do que nunca, já que agora tinha nome e sobrenome, identidade. Não era só um número numa avenida de uma cidade perdida no meio de quase 900 municípios de Minas Gerais. E assim, ela ficou mais orgulhosa ainda da sua trajetória e foi enlarguecendo e sempre cabia mais alguém: amigos, sobrinhos, netos, bisnetos, gatos, passarinhos, morcegos, panelinhas, fotos, bicicletas, bonecas. Há quase 2 anos passou a caber a Luna também, que entrou pelo portão da garagem e não saiu mais.E que também é dona da casa.
Pois bem. Eis que esse ano, depois de 22 dias, mamãe resolveu que era chegada a sua hora também . Pouco sofrimento prá ela, em vista do que poderia ter sido e muito prá nós. Uma dor, um buraco, uma falta tremenda, tamanha!! A sensação é de não ter prá onde ir, de não saber prá onde voltar. O telefone de casa ficou mudo, as banalidades não poderão mais ser ditas e aquela mãozinha fininha não vai mais alisar o meu braço prá eu dormir e a boca não vai beijar meus olhos e pés ao sair do quarto.
Tantas coisas práticas a serem resolvidas entre duas pessoas: meu irmão e eu; e uma única certeza: a casa vai continuar sendo nossa. O que fazer com o resto, não sabemos ainda, mas sabemos que a Casa Azul vai continuar sendo a NOSSA casa.
Chegou o dia de ir até lá a primeira vez como "dona". Quando cheguei, tudo em ordem, mas panos nos móveis, camas sem fazer, geladeira e armários vazios. Agora isso é minha função, entre tantas.Nunca pensei nesse dia em toda a minha vida e por isso, não me preparei pra ele. Foi um baque. Ser recebida pelas lambidas saudosas da Luna, passar por dentro daquela entidade e abrir a porta para que os outros entrassem. Perceber que recebi uma missão, que há tempos foi dada à minha mãe: tomar conta daquela casa, fazer com que ela resista aos anos e possa receber mais amigos, namorados, cachorros, gatos, passarinhos, mudas de árvores; que suas árvores possam dar frutos, que seus temperos possam perfumar o quintal.Doeu tirar cada pano,cada plástico,arrumar cada cama. Imaginar quantas e quantas vezes isso foi feito, quantas vezes alguém ficou prá fazer isso.Desmontar a bagunça dos filhos e netos. E nunca reparei. Nunca agradeci e muitas vezes reclamei.
Agora a função é minha e espero estar pronta para ela.

Beijos,

Lela.

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